Discurso do Deputado Paulo Portas (CDS-PP):
Passaram 25 anos sobre a descolonização. Há quem se
acomode nesse tempo que passou para justificar uma política de esquecimento
em relação às brutais consequências humanas
e sociais que a descolonização teve na vida e na esperança
de centenas de milhar de portugueses que viviam no Ultramar. Para nós,
no entanto, esses 25 anos são uma oportunidade, a distância
histórica suficiente para que seja possível fazer, nesta
altura, um apelo a todas as bancadas parlamentares.
O que está em causa no nosso projecto de lei é resolver um drama humano, um problema social, rectificando o cinismo político e jurídico do Estado português face a centenas de milhar de cidadãos portugueses a quem nunca foi feita qualquer espécie de justiça. Cada um de nós terá a sua opinião sobre a descolonização. Conhecem a minha: a descolonização portuguesa, sobretudo em Angola, Moçambique e Timor, pelo modo como foi feita, causou um desastre humano sem precedentes. Mas entendamo-nos: não viemos aqui discutir as culpas da descolonização; não viemos aqui cuidar de saber se foi o antigo regime que a não preparou ou o novo regime que a precipitou mais do que podia e devia. Viemos aqui fazer uma e só uma pergunta: seja de quem for a culpa, é verdade ou não é verdade que o Estado português é responsável pelo que aconteceu a cerca de meio milhão de portugueses que, de um dia para o outro, tiveram de largar tudo, fugir à devastação e, não raro, para salvar as suas vidas, perderam os seus bens, os seus haveres, os seus depósitos, os seus interesses e até os seus anos de trabalho? Para a consciência de um Estado moderno e civilizado, esta é a única questão relevante: o Estado português, em cuja continuidade histórica e institucional acreditamos, é ou não é responsável por aquilo que aconteceu? Para nós, é! E não vejo, caros colegas, que alguém possa, por mais tempo, continuar a responder que não é responsável. Estamos no tempo certo para interrogar a consciência nacional, desalojar o cinismo jurídico, dignificar o Estado de direito que proclamamos ser e respeitar a cidadania, porque não se esquecem os mais apressados os portugueses que viviam no Ultramar e que de lá vieram, em crise e sem culpa, são cidadãos como todos os outros. Já é tarde, mas será hora de os incluir no programa de pacificação da nossa memória, até porque a libertação de Timor e o relativo consenso em que aconteceu a devolução de Macau proporcionaram a leitura de que o ciclo do império chegava ao fim e de que uma página decisiva da nossa história se virava. Apelo à vossa consciência de mulheres e homens justos: podemos virar essa página, podemos encerrar esse ciclo, sem antes convocarmos o Estado português para, finalmente, fazer justiça a cidadãos portugueses que vieram do Ultramar e que tudo perderam sem nada poderem dizer? Não há substituição possível para tanto sofrimento vivido nesses dias, mas há um honesto dever público, uma indeclinável responsabilidade cívica, de encarar um problema de que o Estado português foge, e, energicamente, podermos e devermos virar outra página, virar o ciclo que aplicou uma «esponja» sobre o que aconteceu aos espoliados do Ultramar, sem verdadeiramente nada lhes resolver nos dias dificílimos que muitos viveram e continuam a viver. O nosso projecto de lei é uma convocação à decência. É mais que tempo de resolvermos esta dívida interna, esta questão de solidariedade entre o Estado e os cidadãos, entre Portugal e muitos portugueses, e que se resume nisto: os portugueses do Ultramar tinham bens e perderam-nos, tinham depósitos e ninguém lhos devolveu, trabalhavam e muitos descontaram, mas até a Previdência, conquista do Estado social, lhes é ainda hoje negada. E tenho de perguntar à consciência de cada Deputado, em especial à consciência dos Deputados dos partidos que, antes do debate, já desprezavam o nosso projecto: se a vossa casa for roubada, se os vossos depósitos forem confiscados, se os vossos anos de trabalho forem subitamente eliminados e não contarem para a vossa pensão de reforma, o que é que cada um de vós fará? Creio que cada um de vós fará o que cada pessoa decente faria: pedir justiça! É justiça que aqui viemos pedir! Só justiça, e não mais do que justiça! Havia nas igrejas da oposição um velho cântico de que me lembro muito, em que o refrão dizia: «Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar». Ao trabalhar, no partido, na meticulosa preparação deste projecto de lei, vi, ouvi e li, de norte a sul, a voz de portugueses que vieram do Ultramar nas circunstâncias que referi. Fui ter com eles, e devo confessar-vos que em nenhum outro momento da minha vida política recebi tanta carta, de tanto lado e de tanta gente. Melhor do que eu, falam os próprios. Creio que algumas citações chegam para explicar o que está em causa e, mais do que isso, despertar em todos nós a humildade dos que, neste Hemiciclo, consideram que a República Portuguesa é a fronteira jurídica onde se exerce a solidariedade nacional. Escreveu-me, por exemplo, Damião Costa, de Odivelas. Conta a sua própria história: «Faço hoje 65 anos de idade. Durante 19 anos trabalhei e descontei para o Sindicato dos Empregados do Comércio e Indústria de Angola, conforme fotocópia autenticada. Se o governo português resolver reconhecer direitos iguais aos que foram considerados nas Caixas dos Sindicatos de Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe ou Guiné, a minha reforma que não chega aos 40 contos, será mais digna. Porque não me contam os 19 anos de trabalho em Angola?». Escreveu-me Guilherme da Fonseca, de 75 anos, hoje a viver no Porto. Também diz ao que vem: «Vivi 30 anos na Guiné. Exerci durante esse tempo a função de bombeiro. Colaborei na formação dos bombeiros, os únicos em Bissau, inicialmente como voluntário, depois, passámos para a alçada da administração colonial e ficámos assalariados. Em 1970, fui nomeado primeiro-comandante, recebia seis mil escudos. Exerci até Maio de 1974, altura em que me meteram num avião para Lisboa. Após o regresso, tentei ingressar no Quadro Geral de Adidos. Responderam-me que não. Não procuro qualquer reconhecimento da minha acção como bombeiro uma decisão minha -, quero apenas que os meus direitos sejam respeitados!». Escreveu-me, ainda, Mário Silva, de Mem Martins. É mais uma história sobre a justiça por encontrar. Diz: «Combati em Moçambique, onde acabei por me fixar. De repente, depois do 25 de Abril, vi-me sucessivamente espoliado, desde a casa, que tanto me custara a pagar, até direitos já adquiridos, como a bonificação por ter estado em zona operacional. Obrigaram-me a pagar descontos que já tinha pago em Moçambique, para me contarem uns magros anos; porque não tenho dinheiro, não pude fazer o mesmo em relação à minha mulher. Não quero nem peço esmolas, tenho é o direito de minimizar os efeitos da injustiça de que fui vítima. Mas é uma desigualdade. Já escrevi cartas e mais cartas, e de todos os departamentos me respondem chapa 4, a mandar o problema para outros departamentos.». Escreveu-me, ainda, por exemplo, Manuel da Cruz, de Braga, que era maquinista dos Caminhos de Ferro de Benguela. Aguentou no Huambo até ao limite da guerra civil e não conseguiu, até hoje, resolver o problema da sua reforma. Significativamente, ele conta: «Depositei no Banco Nacional a totalidade das minhas economias, fruto de uma vida inteira de trabalho à época, ascendiam a 320 000$. O Governo angolano não se pode apoderar do que é meu. Tenho filhos, passo necessidades e isto não é justo.!». Por último, e para não repetir o óbvio, cito as linhas que me chegaram de Jorge Lopes, da Póvoa de Santa Iria, que faz afirmações e junta documentação probatória: «Tinha uma tipografia em Moçambique, fui o sócio impulsionador, parece-me que agora é uma tipografia da Frelimo. Não sou político. Quando me vim embora, tive a ajuda dos meus 33 empregados africanos, chorei por eles, chorei com eles. Fui o último a sair, tive de passar as fronteiras a salto. Fiz 72 anos em Dezembro e, por isso, se um dia forem pagas indemnizações, já cá não estarei para as receber, mas tenho dois filhos e cinco netos, que, como todos os outros filhos e todos os outros netos, têm direito a beneficiar alguma coisa do esforço de uma vida, a vida do seu pai e do seu avô.». Dei-vos conta, brevemente, de quatro casos, de excertos de quatro cartas que equivalem exactamente a 1% das cartas que recebi sobre este tema. Em todas, caros colegas, perpassam dois sentimentos: um, de profunda revolta; outro, de alguma esperança. Revolta, porque os espoliados do Ultramar sentem que o Estado português fez com eles uma espécie de «apartheid» cívico, «apartheid» moral, «apartheid» económico e «apartheid» social, recusando-se a assumir uma responsabilidade que, obviamente, é sua, já que a protecção dos bens e dos direitos dos portugueses que viviam no, então, Ultramar ocorria, à luz do Direito português, em territórios que, á época, eram portugueses. Esse «apartheid» dentro da nossa própria casa tem uma evidência: todos os prejudicados pelas consequências do PREC foram recebendo as suas indemnizações, fosse pela reforma agrária, fosse pelas empresas nacionalizadas; só os espoliados do Ultramar foram prejudicados e nunca reparados! O mais grave é que isto sucede num país e num Estado que todos os dias proclama o seu europeísmo, mas conserva a indigna circunstância de ser a única antiga potência colonial da Europa que nunca indemnizou, nem, de alguma forma, reparou, os seus nacionais que viviam nos territórios entretanto descolonizados. Não se admirem, por isso, que a revolta se imediatize na percepção casuística da discriminação, ou seja, não se admirem que um espoliado do Ultramar nunca possa compreender que haja recursos para financiar a cooperação com a Palestina, mas não haja vontade para, no âmbito da cooperação com os novos Estados de Angola e Moçambique, exigir uma solução razoável para problemas como o dos títulos de propriedade, que, evidentemente, têm de ser enquadrados numa relação Estado a Estado. Nem mesmo o mínimo ético, que seria dar apoio judiciário para impulsionar a clarificação da situação dos bens dos portugueses que viviam em África, nem mesmo esse mínimo ético é prestado pelas autoridades nacionais, deixando todos e cada um dos espoliados à mercê de uma solidão tantas vezes insuportável, feita, muitas vezes, de pobreza e, quase sempre, de desespero. Mas também recebi palavras de esperança de quem não pede toda a justiça, mas pede a justiça possível, que começa no respeito pelas pessoas. A esperança de quem sente que à uma oportunidade para interromper o indigno abandono, não dos territórios, mas das pessoas. A esperança de que esta Assembleia, por uma vez, dê o passo que a coragem recomenda e a prudência não desaconselha: permitir que, com senso, regra e disciplina, o Estado analise caso a caso, veja o que é possível fazer e em quanto tempo se fará e passe a agir em conformidade. Digo-vos uma última palavra sobre este «apartheid» doméstico, esta dívida interna por reconhecer. Creio que a maioria dos espoliados do Ultramar e veio meio milhão-, não acredita nos políticos, não acredita nos partidos, não acredita na política, nos Governos ou no próprio Estado, sejam de que lado forem, tal a indiferença que o poder político, em Portugal, manifestou em relação a eles! É uma exclusão invisível, mas verdadeira. Haja a rectidão de, nesta Assembleia, se perceber isso e recuperar, junto deles, a confiança no Estado e a credibilidade nas instituições! A experiência comparada recomenda a aprovação do nosso projecto de lei. Somos, como vos disse, a única antiga potência colonial da União Europeia que não indemnizou ou reparou, de alguma forma, os seus nacionais que viviam e trabalhavam nos territórios depois descolonizados. A França teve uma descolonização difícil na Argélia e indemnizou os seus repatriados; o Reino Unido fez o mesmo em relação à Rodésia; outros países da União Europeia indemnizaram ou repararam, fosse adquirindo os bens e indemnizando os seus proprietários, em troca de estes desistirem dos seus títulos, fosse prestando apoio judiciário, fosse contando os anos de trabalho para efeitos de constituição de pensões de reforma. Somos o único país que, radicalmente, se recusou a fazer qualquer espécie de justiça! Isto não nos dignifica! Isto envergonha-nos! O critério da riqueza nacional também aconselha a aprovação do nosso projecto de lei. Ainda na década de 70, 24% das nossas exportações dirigiam-se ao, então, Ultramar português e 14% das nossas importações vinham do, então, Ultramar português. O peso que os territórios tinham no produto nacional, e, portanto, na criação da riqueza nacional, é conhecido: era um peso considerável! Pergunto-vos: podemos, devemos ou queremos continuar a ser o único país que não reconhece a cidadãos seus, com bilhete de identidade igual, portugueses como nós, o contributo que deram para a constituição da riqueza nacional? O critério da igualdade de oportunidades, na garantia dos princípios fundamentais, também aconselha a aprovação do nosso projecto de lei. Há quem diga que pode haver expropriação
sem compensação. Mas a isso chama-se confisco!
É ou não verdade que, na lei das indemnizações, de 1977, estavam previstas, e foram pagas indemnizações, por várias espécies de problemas resultantes do processo revolucionário? É ou não verdade que nessa lei se encontrava um celerado e injusto artigo 40.º que, quanto aos bens e direitos dos portugueses que residiam no Ultramar, transferia a responsabilidade para os novos Estados, absolvendo, cinicamente, o Estado português da sua responsabilidade política, fosse qual fosse o regime, naquilo que tinha acontecido? Porque é que a uns são dadas indemnizações e a outros foram negadas? Duas notas finais. Há uma imagem, divulgada convenientemente, de que os retornados são gente rica e famosa. Não é verdade! Não é simplesmente verdade! A esmagadora maioria dos que voltou tem hoje entre 50 e 80 anos de idade. Para esses, o mais dramático dos problemas é o dos anos de trabalho que não são contados para efeitos de uma pensão de reforma. Como poderá ver quem os quiser visitar, do Porto a Aveiro, de Viseu a Setúbal, de Lisboa ao Algarve, há muita gente que vive muito mal! É sobretudo a essas pessoas que é preciso chegar primeiro e fazer justiça! Há quem diga, que o nosso projecto, é exagerado dentro desta nova noção de que a justiça depende do seu preço. Confunde-me ouvir isto da parte de quem, sem pestanejar, aplaude as mais valias organizadas pelo Estado em negócios financeiros que ascendem, em poucos meses, a centenas de milhões de contos, ou de quem nunca se lembrou, como aconteceu positivamente noutros Estados que tiveram impérios coloniais, de colocar como questão prévia para a negociação das dívidas, nomeadamente de Angola e Moçambique a Portugal, a resolução, pelo menos, do problema jurídico dos bens dos portugueses que viviam em Angola e em Moçambique. Essa conexão óbvia entre
uma dívida e um dever por cumprir nunca foi estabelecida com radical
vontade política pelo Estado português. E não nos venham
dizer que se trata de sociedades miseráveis sabemos que são
sociedades miseráveis! Como os senhores também sabem, trata-se,
no entanto, de governos ricos1 São governos ricos em sociedades
miseráveis! Estou a referir-me aos governos de Angola e de Moçambique,
em relação aos quais os créditos de Portugal ascendem
a mais de 300 milhões de contos! Nunca houve radical vontade política
para renegociar essa dívida e, eventualmente, aceitar um perdão,
colocando como condição prévia encontrar um solução
razoável para o problema dos bens dos portugueses que viviam nesses
países.
A Nação continua-se, e para nós a Nação é quem ficou, quem um dia teve de partir (os emigrantes) e quem um dia teve de voltar (os espoliados do Ultramar). Estamos aqui a fazer justiça a quem
nunca recebeu um módico de justiça das instituições
políticas democráticas da República Portuguesa.
Discurso do Deputado Fernando Seara (PSD): Permitam-me que cumprimente, na pessoa V. Ex.ª, Sr. Presidente, nesta intervenção, toda a Câmara, uma Câmara plural, uma Câmara política, uma Câmara com clivagens e uma câmara que tem de compreender a generalidade dos cidadãos, dos comportamentos e das atitudes. Diz-se que, interrogado sobre o significado da Revolução Francesa, um ex-Primeiro-Ministro de um dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, respondeu: «é cedo demais para dizer». É, pois, 26 anos depois do 25 de Abril e 25 anos depois do regresso repentino, e em condições bem dramáticas, de centenas de milhar de cidadãos portugueses de Angola e de Moçambique, mas também, e em muito menor número, da Guiné-Bissau, de São Tomé e Príncipe, de Cabo Verde e de Timor, tempo para, nesta Casa comum e plural da democracia representativa portuguesa, relermos Diogo do Couto e o seu O Soldado Prático e prestarmos a devida atenção a alguma perturbante contabilidade do passivo que a descolonização portuguesa suscitou. E é o momento para dizermos que já não é cedo para ultrapassarmos a reflexão e passarmos à acção normativa. Não é este o momento, contudo, para questionarmos em profundidade o quadro da descolonização, nem sequer para aprofundarmos o conteúdo substancial da semanticamente denominada «descolonização exemplar». É este, porém, o instante,
Srs. Deputados, para relembrarmos o Professor José Veiga Simão,
quando considerou que «a descolonização se transformou
em tragédia para Portugal e para os novos países de língua
portuguesa» e aditou que «importa encontrar soluções
concretas para as reformas e pensões de funcionários e trabalhadores
e para as indemnizações a empresários e proprietários
que foram esbulhados dos seus bens».
Reparação que, aliás, foi assumida como princípio inquestionável, pelo Dr. José Manuel Durão Barroso, nesta mesma Assembleia da República, em sessão de Abril de 1988, a uma questão do então e actual Deputado Professor Narana Coissoró. É o tempo, por isso, de este parlamento reparar uma injustiça na linha do que fez, por exemplo, o poder legislativo francês através da lei de 15 de Julho de 1970, versão original, e que foi objecto de reformulação em leis posteriores de 1978, de 1987 e, agora, mais recentemente, de 1994. A França a França plural vive, assim, a 4.ª lei de indemnizações para os seus repatriados, principalmente (é evidente), da Argélia. Mas os italianos souberam, igualmente, proteger os seus cidadãos e, recordo, foi através da Lei n.º 135, de Abril de 1989, era, então, Primeiro-Ministro o saudoso, para alguns só, Bettino Craxi deslocados da Eritreia e os ingleses não deixaram de salvaguardar patrimonialmente os seus cidadãos deslocados do Quénia e de proteger, por força do Acordo de Lancaster House, os seus cidadãos na Rodésia, hoje Zimbabwe. E neste acordo, recordemos aqui, o Reino Unido, para além de garantir, por exemplo, a protecção da população branca e dos seus interesses, durante um período de 7 a 10 anos, assumiu que aqueles que deixassem o país teriam as suas pensões no estrangeiro. Mais de 25 anos após o 25 de Abril, ultrapassado o necessário período de rejeição e saradas muitas feridas muitas, mas muitas feridas, algumas delas bem visíveis aqui hoje -, é o momento para a Assembleia mostrar a muitos milhares de portugueses que, tal como escreveu Aristóteles, «a injustiça é coisa da polis, já que a justiça é o princípio da ordem de uma comunidade política». Assim, «a natureza das coisas do político é entendida por todos os homens como uma certa igualdade, como algo que não pode deixar-se no esquecimento, só porque encerra algumas dificuldades». Com efeito, agora que as águas das relações entre Portugal e os países africanos de língua oficial portuguesa voltaram ao seu leito fruto do esforço persistente de uma coerente política externa africana iniciada pelos governos do Professor Cavaco Silva e «as areias começam a repousar nos fundos», há que dar esperança a muitos vivos e dizer-lhes, formalmente, que a defesa fundamentada dos seus direitos não pode cair em outro tempo de esquecimento. Na verdade, a extinção do Gabinete de Apoio aos Espoliados (GAE), criado, pelo prazo de cinco anos, pela Resolução do Conselho de Ministros de 16 de Maio de 1992, impõe que o sentimento de busca do «justo centro» que esteve na origem da sua constituição não seja obnubilado. É que a justiça deve assumir-se sempre, como a força anímica do direito. É que, apesar das dificuldades, o Gabinete de Apoio aos Espoliados, como bem salientou o Sr. Deputado João Carlos da Silva, conseguiu resolver algumas questões relacionadas com o complexo processo de descolonização, quer através de mecanismos de cooperação com as autoridades dos países africanos de língua oficial portuguesa e sensibilizando-os para a procura de soluções conducentes à reparação dos interesses dos cidadãos portugueses prejudicados pelo processo de descolonização, quer executando e acompanhando as diligências, de responsabilidade nacional, com vista à resolução de algumas questões que envolvem muitos milhares de nossos concidadãos. Subjacente a esta iniciativa política do CDS-PP está uma dupla responsabilidade do Estado de direito contemporâneo: desde logo, o reconhecimento da própria responsabilidade do Estado se bem que, e ao contrário do que decorre do projecto de lei do CDS-PP, uma responsabilidade que não pode ser tão amplamente presumida -, afastando-se, desta forma, o clássico princípio oriundo do Direito romano da irresponsabilidade do Estado para com os seus cidadãos; e, depois, em segundo lugar, assumindo que nenhum Estado se pode alhear da defesa dos legítimos direitos dos seus cidadãos em países estrangeiros e assegurando, na linha dos princípios estruturantes positivos da protecção diplomática, a respectiva defesa junto de governos terceiros e, igualmente, pressionando tais governos a publicarem legislação ou a tomarem medidas que permitam a reparação das respectivas reparações patrimoniais. É indiscutível que tais reparações só são efectivas se traduzidas em lei. Lei essa que tem de ser a expressão de princípios e valores mas que tem de ser, sempre, adequada ás circunstâncias, compatível com a realidade e proporcionalmente equitativa. É que, como escreve Fréderic Bastiat, «o fim da lei é impedir a injustiça de reinar. Com efeito, não é a justiça que tem uma existência própria, é a injustiça. Uma resulta da falta da outra». É este sentimento de injustiça que leva o Grupo Parlamentar do PSD a votar favoravelmente o projecto de lei do CDS-PP. É um voto favorável nos princípios fundamentais que norteiam o projecto de lei. É um voto pela reparação de direitos de muitos milhares de portugueses que ajudaram a construir e a desenvolver territórios, que, como todos nós, sempre se sentiram portugueses por mais distantes que se encontrassem, deste espaço continental europeu. Foram homens e mulheres que abandonaram tudo e que, com um imenso espírito de sacrifício e uma relevante ajuda interna, é indiscutível, se reconciliarem, sem perderem a memória, consigo mesmos. São milhares de cidadãos que merecem um sinal dos seus representantes, num tempo em que a memória e o formalismo colectivo já repararam, há mais tempo, injustiças económicas internas ou, até, como no ano passado, repararam e relevaram, excepcionalmente, situações profissionais de carácter subjectivo. Mas, para além da nossa adesão ao princípio ou aos princípios noéticos subjacentes ao projecto de lei do CDS-PP, não queremos deixar de evidenciar, desde já, algumas reservas em relação a determinados aspectos da iniciativa, como, por exemplo, a composição e as competências da comissão para a regularização de situações decorrentes da descolonização, a delimitação dos activos do património inicial do fundo de regularização, e, bem assim, a complexa situação jurídica que emerge do artigo 14.º, ou seja, a novação da obrigação de indemnização. Não queremos também deixar de chamar a atenção dos proponentes, permitam-me, para a necessidade de adequação à nova relação da semântica político-constitucional, isto é, para a conversão da expressão «Presidente do Conselho de Ministros» na de «Primeiro-Ministro». Bem sabemos que vivemos, tal como em outros momentos da nossa História, um presidencialismo de primeiro-ministro; mas sabemos, por experiência vivida e vista, que, se tivemos um presidente do Conselho de Ministros que raramente saía para o estrangeiro, temos, hoje em dia, um Presidente do Conselho de Ministros, o Primeiro-Ministro, que dificilmente deixa de se encontrar no estrangeiro. Não é momento para dizermos, nesta Câmara, que é cedo demais para repararmos uma injustiça. Nem é este o momento para, invocando circunstâncias de indeterminabilidade pecuniária, rejeitarmos um projecto que tem virtualidades para se tornar uma verdadeira lei-quadro de indemnização dos repatriados do ex-Ultramar português, na linha do que outras ordens jurídicas europeias já consagraram. Sabemos, como outros, que «todo o tempo é tempo». Mas também sabemos que já não há mais tempo para mais «moral de simpatia» ou para um outro tempo de esquecimento. Invoca-se, por vezes, a impossibilidade financeira, mas a situação do País, deste Portugal de hoje, está melhor ou está pior? È boa ou é má? O Sr. Primeiro-Ministro elogia a situação a todo o tempo e em qualquer lugar. Questiona-se a justiça de uma medida, de uma iniciativa, ou a dificuldade concreta de a praticar? O País não pode estar «bem»
para herdar dívidas e «mal» para não assumir
certo tipo de responsabilidades que têm a ver com o fim de injustiças.
É que, como se lê no Livro dos Provérbios, «se
te revelas fraco nos dias de adversidade, a tua força não
é mais do que fraqueza». E dos «fracos», de todos
os fracos, não reza a História, nem a história de
Deus nem a história dos homens, dos homens concretos, dos homens
e das mulheres que, sendo aqueles seres que nunca se repetem, são,
em si mesmo, o fim último da essência dos Parlamentos, desta
Casa, desta nossa Casa, desta Casa plural.
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